A nota amarela

A nota amarela Gustavo Melo Czekster




Resenhas - A nota amarela


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Paulo Silas 24/02/2021

O que constitui a essência de tudo? O que representa o elemento mínimo do qual se tem todas as coisas? De onde ou do que é que tudo veio? Há quem diga que a nota amarela é a resposta - o elemento que deu origem a tudo o que hoje existe e ao que já existiu -, e a busca pelo alcance dessa nota é a empreitada sobre a qual se lança a protagonista desse livro. Mas não apenas. É que o livro traz em seu conteúdo dois livros. "A Nota Amarela" é um romance que traz a história de uma mulher que em meio a um concerto divaga consigo mesma e teta alcançar a nota amarela. "Sobre a Escrita: um ensaio à moda de Montaigne" é um ensaio metaliterário que também fala sobre o seu autor. De certa forma, um complementa o outro - o que não necessariamente faz com que o leitor tenha que ler ambos na busca por uma continuidade, como explica o autor na introdução da obra - mas sairá perdendo uma ótima história caso assim faça. De qualquer forma, qualquer que se lance nas páginas desse excelente livro sairá maravilhado com as linhas que o preenche.

Em "A Nota Amarela", o autor dá vida em sua obra para a violoncelista Jaqueline du Pré. É uma peça ficcional que se passa com alguém real em uma situação real com elementos reais. Nesse sentido, realidade e ficção se misturam de uma maneira singular no romance. A história é contada pela perspectiva da protagonista no decorrer da famosa apresentação do concerto para violoncelo de Elgar op. 95 - que foi conduzido pelo maestro (e seu marido) Daniel Barenboim e filmado em 1967 - em que Jaqueline foi solista. Um minutos antes, um minutos depois e todos os trinta minutos da apresentação (em ordem decrescente) aparecem como divisor dos capítulos da história, pelos quais o autor narra tanto a dinâmica da concerto quanto as digressões tantas feitas por Jaqueline - que em meio à reflexões sobre sua vida e o universo, parte em busca da nota amarela.
Já em "Sobre a Escrita: um ensaio à moda de Montaigne" o autor aborda muito sobre a questão do processo criativo e de escrita, assim fazendo, como o titulo sugere, ao melhor estilo de Montaigne - que fornece o chão de amparo no qual pisa firme Gustavo. Para além da explanação sobre o criar e escrever literatura, o autor compartilha um pouco da sua vida, cujos eventos relatados ajudam muito a explicar todo esse processo que culminou na escrita do romance presente na obra.

Gustavo Melo Czekster é escritor por excelência. Depois de "O Homem Despedaçado" e "Não Há Amanhã", seus dois primeiros livros de contos, aparece agora com esse fenomenal "A Nota Amarela: seguida de "Sobre a Escrita: um ensaio à moda de Montaigne"", que atrai e encanta desde as primeiras linhas introdutórias. Fazer uma escrita atraente em um romance que se passa num ambiente em que os personagens não saem do lugar, pois os movimentos permitidos são apenas aqueles necessários para conduzir seus instrumentos musicais, é um feito para poucos, feito esse habilmente alcançado por Gustavo. O romance e o ensaio da obra agradam o leitor - ambos divertem, fixam a atenção e muito ensinam. Se já existiam bons motivos e provas para situar o autor como um excelente contista, essa obra evidenciou que é um escritor nato qualquer seja o gênero que escreva. Um dos grandes nomes da literatura nacional contemporânea que merece ser lido e debatido - "A Nota Amarela" é mais um argumento probante que evidencia isso.

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Cassionei 12/06/2021

LITERATURA, OP. 3, DE CZEKSTER
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O violoncelo, ou simplesmente cello, sempre foi meu instrumento preferido de ouvir e ver. Seu grave, não tanto como o baixo (peço perdão se me equivoco, pois sou um analfabeto musical), me enche os ouvidos e me soa melhor do que o som do violino, em que pese os solos de Paganini me arrebatarem. A estética visual também me atrai, já que é lindo ver o instrumentista tocando, o cello entre as pernas como se abraçasse o corpo da pessoa amada ajoelhada a sua frente.

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O cello também é o instrumento que gosto de ler quando aparece na literatura, embora isso aconteça em raras obras. Há um conto de Machado de Assis, “O machete”, em que o protagonista se apaixona pelo instrumento: “Havia no violoncelo uma poesia austera e pura, uma feição melancólica e severa que casavam com a alma de Inácio Ramos”. Na novela O homem amoroso, de Luiz Antônio de Assis Brasil, o protagonista é cellista da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, como foi o próprio escritor, que voltou a retratar o instrumento no belíssimo romance O inverno e depois, de onde retiro este trecho: “No início do concerto, ele foi atraído pelo solista, que travava uma requintada luta corporal com o violoncelo, capturando-o entre suas pernas rijas, perdendo-o logo para recuperá-lo com gestos que comportavam as interpretações mais libertinas”.

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Essa simbologia erótica do cello, que pode lembrar as curvas do corpo de uma mulher, também é explorada, mas no ponto de vista feminino, no terceiro livro e primeiro romance do premiado contista Gustavo Melo Czekster. A nota amarela (Editora Zouk) descreve os 30 minutos em que Jacqueline du Pré executa o Concerto para violoncelo, op. 85, de Edward Elgar, regido por Daniel Baremboim, marido da musicista, diante das lentes do documentarista Christopher Nupen. O vídeo está disponível na internet. Entrando na mente da artista, o narrador dá voz a ela. Um risco grande do escritor, que soube conduzir, como um competente maestro, as reflexões de uma mulher que é o centro das atenções de um público exigente e que sabe que sua performance será imortalizada pelas câmeras: “Os olhos de todos estão presos a cada gesto meu (...)”.

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Ciente disso, ela busca a perfeição, que ganha cor e nome, a dita “nota amarela, a nota da Criação, um mito da China Imperial”, cuja história ouviu de seu professor. Durante o concerto, ela busca atingir a nota, ao mesmo tempo em que lembra de alguns momentos de sua curta vida e o relacionamento com Baremboim, a quem chama carinhosamente de Danny. Czekster explora muito bem o tempo psicológico que se dilata a partir dos devaneios de Jacqueline du Pré, enquanto o tempo cronológico é preciso, os 30 minutos do concerto que também intitulam os capítulos, contados de forma regressiva.

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No entanto, além da busca da nota perfeita, os pensamentos de Jacque mostram sua relação quase carnal com o instrumento, inclusive diante de várias pessoas: “Tocar cello é excitante: sinto-me estremecer quando ele se esfrega de um lado para o outro entre as minhas coxas abertas, oferecidas, e a sua virilidade solene me deixa encharcada como nenhum homem, nem mesmo Danny, jamais conseguiu (...). Quando estou no palco ninguém desconfia, mas estão me olhando transar ao vivo”. Ou então: “Nunca sonhei em tocar música, o objetivo sempre foi acariciar o meu amante de madeira até fazê-lo gozar de formas que o mundo ainda não tinha visto (...)”. Essa ousadia ficcional do autor, lembrando que a personagem é real, busca atingir o que poderíamos chamar de “a letra vermelha”, que no caso não é a perfeição divina da criação, mas a expressão diabólica do artista literário, que assina, com sangue, um pacto fáustico, buscando retratar o ser humano com suas perfeições e imperfeições.

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Em determinado momento, du Pré diz que o “mundo está repleto de músicas escondidas”. Ouvi música ao folhear as páginas do romance de Gustavo Melo Czekster, assim como, enquanto escrevo estas impressões, ouço a música do aplicativo “qwertick”, que simula os sons de uma máquina de escrever. Só agora vou ouvir de novo Jacqueline du Pré, que não será mais a mesma para mim (melhor, talvez) depois da leitura do romance. Aliás, os bons livros nos fazem isso, não olhar (ou ouvir) mais o mundo e as pessoas da mesma forma.

Zero

Vale uma observação final. O romance é seguido de Sobre a escrita: um ensaio à moda de Montaigne, texto que formou, junto com o romance, a tese de doutorado de Czekster. Ainda não li essa segunda parte, para não influenciar as minhas impressões de leitura, por isso não foi comentado aqui. Como sei que Gustavo é também um excelente ensaísta, além de excelente contista, lerei em breve. Deve agradar a quem busca livros sobre escrita criativa.



site: https://cassionei.blogspot.com/2021/05/literatura-op-3-de-czekster.html
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Elenara 15/02/2021

A Nota Amarela e as impressões de leitora
Antes que comecem a ler, já aviso que isso não é uma resenha sobre o excelente livro A Nota Amarela do Gustavo Czekster. São impressões de leitora.

Em primeiro lugar devo dizer que sou super fã do Gustavo. Pessoa e escritor. Seus dois primeiros livros de contos me encheram a alma de leitora com deleites. Quando soube de seu primeiro romance, lá estava eu na fila de compras virtuais.

A Nota Amarela. Um desafio para quem cria. Talvez um desafio para todo ser humano. Aquilo que "se oculta na sequência das coisas e dentro de sim mesmo para assim trazer alento - e salvação a esse nosso mundo tão áspero". Assim comecei a leitura, pela dedicatória, que sempre me toca. O livro impresso tem dessas magias de contato, de pegar, de sentir. Quase um ritual sensual de se apoderar das ideias e palavras que os autores lançam em suas obras e que, nós seus leitores, nos apossamos com volúpia. Ou desdém. Ou estranheza. Ou deslumbramento. Ou tudo isso. Porque, de certa forma, a leitura é como tocar uma música de outro autor.

Voei? Talvez. Neste momento fiz como no início da leitura. Abri o youtube e estou ouvindo o Concerto para violoncelo de Edward Elgar em mi menor, op. 85 com Jacqueline du Pre regida por Daniel Barenboim. E é sobre isso que trata o livro. Os minutos de magia de um concerto. Para quem conhece música instrumental, ou seja lá o nome que os entendidos a chamem, escutar essa gravação é um deleite inexplicável. (Sugiro que leiam os comentários no vídeo.)

Mas é mais que a descrição de uma excepcional violoncelista, no auge de sua técnica, regida pelo seu jovem marido. O livro faz uma viagem pela busca pela perfeição, e até mais que isso, porque muitas vezes a perfeição pode ser alcançada pelo domínio da técnica, pelo suor aliado ao talento, mas a nota amarela, o "huang chung" é muito mais que isso. É alcançar a nota primordial, é quase ser uno com a arte que se quer representar. É como se encarar de frente ao mistério e mergulhar de cabeça e entrega. Jacqueline du Pre era uma artista que brincava com a música, pelo que li sobre ela. Sim, o livro te leva a querer saber mais, a escutar sua música em outros meios e ferramentas. De certa forma, é uma armadilha (do bem) ao conhecimento e ao despertar dos sentidos que a música traz.

Um adendo. Estamos em épocas cruéis. A música instrumental tem me feito companhia de uma forma que desconhecia. Tenho para mim que a arte, todas elas, são um elo nosso com a humanidade que nos habita. Elas nos ligam ao que de mistérios e belezas temos dentro de nossas almas, e que nos abastecem contra as barbáries da vida e das sociedades.

Voltando ao livro. Impressões da leitura. Sendo um romance, e ao mesmo tempo, um romance dentro de um trabalho acadêmico, não senti a mesma fluência dos outros livros do autor. Ao mesmo tempo que sentia um refinamento na escrita, uma evolução (nesse sentido) das técnicas de burilar frases e efeitos, aquela liberdade de outros livros, me pareceu mais distante. Me lembrei de uma história zen onde um monge olha uma árvore e sabe que é uma árvore. Depois ele entra em um mosteiro e estuda tudo sobre uma árvore. Depois que se torna um mestre, ele deixa tudo de lado e vê uma árvore...como uma árvore. Talvez seja isso também o encontro com a Nota Amarela, uma forma de iluminação.

O livro segue uma ondulação, como na música. Tem momentos mais intensos, outros mais técnicos, outros de angústia. Em todos eles, a descrição de como a artista se sentia me impressionou pela riqueza de sensações ao tocar, e ao mesmo tempo pelo retrato de uma jovem, no auge de sua técnica e paixão pela vida, uma mulher tão humana quanto qualquer uma de nós, uma mulher com um tesão pela música, com uma alegria infantil/adulta de se jogar e ser feliz fazendo o que lhe fazia feliz.

Não é o que queremos todos? Não importa se somos ungidos por um talento único para a arte, ou se sabemos fazer um pão com maestria, ou qualquer outra habilidade que nos faça sair do chão, esquecer as horas, mergulhar na vida e nos aproximar da nossa Nota Amarela.

"estamos preparados para saber que existe uma porção de Deus dentro de cada um de nós e que pode ser atingida através da arte, esta loucura tão humana? Não é melhor continuarmos imperfeitos?" Gustavo Melo Czekster - A nota Amarela


Talvez, e digo talvez, porque essas são reflexões pessoais sobre a leitura, o querer buscar a perfeição nos afaste justamente daquela entrega que as traga para nós.

Ao acabar o romance eu tinha a sensação de ter lido um concerto. Com todas as suas nuances de ritmo e sensações.

E entrei então no ensaio "sobre a escrita". Outro livro. Outras emoções. Outras explicações.

Diria que é um legítimo 2 em 1. As duas leituras por demais instigantes. Os minutos de um concerto de uma artista que teve um fim trágico ou melancólico, em função de uma doença paralisante, quase como um simulacro de Icaro (como bem descreveu o Gustavo em uma live), aquele que ousou se aproximar de Deus e foi punido, tendo suas asas derretidas. A mostra perfeita de que humanos somos. O ensaio fala sobre as próprias questões de humanidade e finitude do autor.

São várias leituras. Várias conclusões. E não é um livro que termina ao se fechar as páginas.

site: https://www.elenaraelegante.com.br/2021/01/nao-e-melhor-continuarmos-imperfeitos.html
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