Italo 14/01/2024
Meu destino é ser onça
O enredo da Grande Rio para 2024 me inspirou a ler esse livro, que se propõe a resgatar o mito--embora prefira chamar de História, com H maiúsculo mesmo--de criação na cosmogonia tupinambá. Além de me ajudar a entender a letra do samba-enredo da Grande Rio, que era um pouco confusa antes da leitura, o livro abriu minha mente para questões e temas muito importantes.
Segundo o livro e suas fontes, das quais a que mais me cativou foi o diário do francês André Thevet, o mundo foi criado pelo Velho (no enredo da Grande Rio, ele é chamado de Velho Onça, embora eu não me lembre de algo, no livro, que corrobore com a ideia de que ele era um Jaguar). O mundo era maravilhoso, bonito, cuidado, e ninguém precisava trabalhar, pois lá todas as ferramentas de trabalho funcionavam sozinhas - "flechas e paus que trabalham sozinhos" -, e a comida era farta. Mas o Velho começou a se decepcionar com a humanidade por não ser devidamente reconhecido e respeitado, e então decidiu por fim a primeira humanidade. O mundo ardeu em chamas, e só um homem, o único que ainda respeitava o Velho, foi salvo, o Pajé do Mel.
Então o Pajé do Mel convenceu o Velho a por fim às chamas, e Ele o fez com um dilúvio. As águas levaram os rastros de destruição para um grande sulco que chamamos de oceano, que é salgado porque as cinzas de tudo que foi destruído acompanharam as águas. Nesse novo mundo, mais difícil de se viver, floresceu a segunda humanidade. O paraíso -- a terra-sem-mal --, que antes era para todos, agora estava escondido, e apenas algumas pessoas sabiam o caminho para chegar até lá.
Mas assim como a primeira humanidade, a segunda humanidade tomou decisões imprudentes. Perseguiu, matou e expulsou esses homens privilegiados, que podiam ir e voltar da terra-sem-mal e se comunicar com o Velho. E então outro dilúvio aconteceu, dessa vez causado pela disputa entre dois irmãos.
A terceira humanidade, que é a atual humanidade, descende desses dois irmãos. Na cosmogonia tupinambá, de cada um dos dois descendeu um povo, inimigo do outro, e era, portanto, missão dos descendentes praticar rituais antropofágicos contra o povo oposto de modo a conseguir o conhecimento para chegar à terra-sem-mal no pós-vida -- já que mais nenhum ser vivo sabia o caminho até lá. "O destino do tupinambá era ser onça, era ser canibal, porque já não era possível atingir a terra-sem-mal em vida."
O que resenhei foi o mito principal, pois no decorrer do livro, e especialmente das fontes originais, contam-se ainda muitas outras histórias que explicam comportamentos humanos tupinambá e aspectos da existência. Foi valioso ler esse livro, porque ele é um fragmento da riqueza das visões cosmogônicas dos povos originários do Brasil. Como essa, devem existir outras milhares, algumas ainda preservadas, e outras muitas apagadas pelo colonizador e esquecidas pelo tempo. Resgatar essas histórias, que não só contam mitos ou tentam explicar a origem das coisas existentes, mas que são constituintes de nossa identidade, é um dos esforços que a sociedade deve se propor a fazer. A destruição dos povos originários é um processo corrente, sem data pra acabar. O Brasil precisa se reconciliar e se encontrar consigo mesmo o quanto antes, ou até lá a Onça já terá devorado a Lua, e o mundo acabado em escuridão, o que não parece distante da realidade.