Marcelo Rissi 24/10/2023
As cabanas que o amor faz em nós (Ana Suy)
Sempre afirmo e repito que a literatura nacional contemporânea escrita por mulheres é exemplar e, historicamente recôndita, está conquistando, com grande atraso (infelizmente), o espaço e o reconhecimento devidos.
A psicanalista e professora Ana Suy é autora de "A gente mira no amor e acerta na solidão", uma das obras mais arrebatadoras que li esse ano e que se tornou, imediatamente, um dos livros da minha vida. Na obra citada, adaptação de trabalho acadêmico, a autora esclareceu diversas questões relacionadas ao amor, à paixão e à solidão sob o prisma técnico da psicanálise, mas com linguagem voltada ao público leigo.
Em "As cabanas que o amor faz em nós", a autora compilou uma série de crônicas, de poesias e de textos estruturados na forma de prosa poética escritos ao longo de intervalo impreciso (conforme esclarecido ao final da obra, o material que compõe esse livro foi criado após o puerpério da autora e o resultado foi concluído em mais de 3 anos, mas em menos de 10 anos).
O tema abordado é, essencial e centralmente, o amor, assunto ao qual a autora dedicou e dedica sua atenção e estudo.
Os textos que compõem a obra são formados, essencialmente, por fluxos de pensamento/de consciência dos narradores - ora mulheres, ora homens -, com reflexões acerca do amor e de suas consequências, reflexões essas formuladas a partir de situações hipotéticas e concretas usualmente vivenciadas (e às quais, por certo, o leitor se identificará em muitos casos).
O tom da obra é fundamentalmente melancólico, focalizando o amor no aspecto do seu desarranjo, desacerto, incompreensão, esfacelamento ou ausência de correspondência.
O matiz uniforme e exageradamente dramático de "As cabanas que o amor faz em nós" é levado à máxima potência em todos os textos, ao longo das quase 200 páginas, tornando a leitura, em alguns momentos, um pouco exaustiva.
Ainda, a repetição do tema (amor) e, sobretudo, a forma da respectiva abordagem (sempre sob o seu aspecto apático e descolorido da não correspondência ou da ruptura) fazem dessa leitura uma experiência, em algumas passagens, um pouco extenuante, o que é potencializado pelos fluxos de consciência altamente abstratos (creio que, por vezes, perdi o fio da narrativa e não compreendi muito bem o sentido conferido aos pensamentos compartilhados nas prosas).
De todo modo, a obra, dividida em três partes, é dotada de inegável valor. O amor é abordado sob prismas infrequentes de dor e esfacelamento, traçando-se, assim, contraponto à ideia popular de que esse sentimento conduz apenas a experiências harmoniosas e agradáveis.
Os textos contêm, subjacentes, análise e foco psicanalíticos sobre um assunto tão abstrato e sensível, enriquecendo sobremaneira o seu valor (não se trata, assim, de obra que aborda o amor apenas por figuras de linguagem e por abstração vazia, mas, ao contrário, por meio de uma narrativa com conteúdo rico, sedimentado em bases psicanalíticas, ainda que implicitamente, nas entrelinhas).
A forma narrativa adotada é, ainda, exemplar, com ampla utilização do recurso de metáforas e de aguçamento de aspectos sensoriais, conferindo à prosa, como já afirmado, tom poético, sem lhe subtrair, porém, o aspecto técnico/psicanalítico da análise do tema.
Há diversas crônicas que chamam a atenção, mas destaco especialmente duas.
"A de dezoito e a de noventa e dois anos" coloca em confronto, na forma de fluxo de consciência, os pensamentos de uma mesma pessoa ao fio de idades tão díspares, ao início e ao fim da vida. É lapidar - e, portanto, merece destaque - a frase contida nessa crônica, que assim diz: "Eu queria dizer pra ela que a coisa mais útil que a gente pode aprender nessa vida é escutar o que diz. Porque geralmente a gente fala as coisas pros outros ouvirem e acaba não ouvindo as próprias palavras".
"Ei!", outra crônica que destaco, provoca ao questionar: "Você já teve um caso tão sério com a dor de existir, que fez par com ela? Você já se apaixonou pelo abismo onde você fez morada"?
Por fim, a obra possui um prefácio excelentemente escrito pelo psiquiatra, psicanalista e escritor Marco Antônio Coutinho Jorge, cuja leitura é essencial em razão da excessiva beleza e do enorme grau de sofisticação da linguagem utilizada.
Boa leitura.