Um escritor conta a seu filho quais os livros mais importantes que leu, todos achados por acaso, e como, também por acaso, um desses livros o levou a conhecer a mulher com quem teria o filho.
“Então se você se pergunta porque existimos, filho, para que serve tudo isso, tantas estrelas e tantas minhocas, tanta vida desde a terra ali da horta até galáxias tão distantes que o número em trilhões de quilômetros teria infindáveis zeros, tudo vivo, sim, mas para que, pergunta você, como se vida precisasse explicar a que vem. Mais distante ainda de mim me achar capaz de qualquer resposta para isso, além de não querer saber, sim, não quero saber para que pode servir a vida, não vejo um Universo serviçal, obediente às órbitas e à hierarquia, estrelas rodeadas de planetas, planetas rodeados de satélites, exatamente como orbitam os elementos do átomo, tudo a serviço... do quê? Se eu soubesse, decerto a vida perderia a graça.
Mas, se não sei para que serve a vida, sei que você mesmo nasceu graças ao que sai fora de ordem, rompe a rotina, floresce em qualquer tempo, porém sempre de repente, o acaso. Sim, você nasceu ao acaso, guri, faz vinte anos que não te chamo assim, chegou o tempo de te contar. A duzentos por hora o trem corria de oeste para leste de noitinha, prolongando o poente, eu maravilhado diante daquele céu tropical no verão europeu, há décadas não fazia tanto calor com tantas chuvas e suas nuvens agora se misturando no horizonte, eu dormitando, aí passa uma mulher tirando a jaqueta, suada e sedenta no rumo do restaurante, lembrei da fábula de Esopo: vento e sol disputam quem pode mais, quem fará aquele homem lá tirar o casaco, e o vento castiga o homem que entretanto só se agarra mais ao casaco, até o vento desistir, então o sol sai da nuvem para banhar de luz e calor o homem, que suando tira o casaco, mas o fato agora era que eu tinha um livro a devolver, porque tirando o casaco ela deixou cair do bolso um livro no meu colo. (...)”
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